Desde dezembro de 2019, o mundo vem sendo assolado por uma pandemia provocado pelo novo coronavírus. Situação equiparável, só havia ocorrido há mais de 100 anos atrás, quando a Gripe Espanhola afetou grandemente a Europa nos idos de 1918. Com início na região de Wuhan na China, a doença rapidamente se espalhou para outros países da Ásia, Europa, América do Norte, América do Sul, África e Oceania. A alta transmissibilidade do vírus e a possibilidade de evolução para casos graves de SARS (Síndrome Respiratória Aguda) entre outras complicações, fez com medidas sanitárias de quarentena e isolamento social fossem tomadas ao redor mundo, mudando dramaticamente a humanidade como conhecemos. As ramificações das mudanças provocadas pela COVID-19 na civilização global apenas começaram e provavelmente continuaram por décadas.
Os esportes de alto rendimento, assim como diversas outras atividades profissionais, sofreram interrupção durante o período de quarentena, em virtude da Pandemia COVID-19. Todas as modalidades esportivas foram afetadas em maior ou menor proporção, uma vez que o convívio social tornou-se fonte de contágio e risco de transmissão do novo coronavírus e a saúde dos atletas, equipes técnicas e expectadores passaram a ser a prioridade e, como consequência, todo o calendário esportivo foi cancelado, ou adiado a exemplo dos Jogos Olímpicos Tóquio 2020.
Embora a maior parte dos atletas provavelmente apenas experimentem sintomas leves como resultado da infecção por coronavírus, as estratégias preventivas são necessárias por diversas razões. Primeiramente para se evitar a disseminação da doença, pois embora a maior parte dos atletas sejam jovens e não apresentem comorbidades, eles podem ajudar a espalhar a contaminação viral. Em segundo lugar é importante que os atletas competitivos mantenham-se saudáveis e preservem suas capacidades físicas, respiratórias e cardiovasculares, uma vez que as consequências a longo para dessa nova doença ainda são desconhecidas. Portanto, é fundamental que os atletas profissionais, bem como todo o restante da população respeitem a quarentena e o isolamento social.
Essa situação provocou uma mudança inusitada na rotina de milhões de atletas em todo o mundo, que pela primeira vez em suas carreiras, precisaram manter-se afastados de suas práticas habituais por um período maior que trinta dias. Atletas profissionais, mesmo em suas férias, seguem planos de treinamento e orientação nutricional para que a perda de suas condições atléticas não seja tão severa neste período. Contudo, em face do isolamento social imposto pela pandemia, o fechamento dos clubes, centros de treinamento, academias de ginásticas e afins, tais sujeitos tiveram que encarar uma nova realidade: os treinamentos remotos, cada qual no espaço e com os recursos que estavam disponíveis, muitas vezes improvisados, e sem supervisão direta dos profissionais da saúde e do esporte.
Preparação do atleta de alto rendimento
A preparação de um atleta de alto rendimento envolve um longo e minucioso processo, que se inicia quase sempre na infância, momento onde as aptidões e habilidades específicas costumas ser identificadas por profissionais da área do esporte. A rotina de tais atletas é vivida intensamente desde muito jovens, com poucas ou nenhuma fase de inatividade absoluta. Mesmo nos períodos inter-temporadas, esses indivíduos seguem planos de manutenção e cuidados com o corpo e alimentação. Cada temporada é detalhadamente planejada, com base no calendário competições e dos objetivos anuais de cada atleta e/ou equipe, caracterizando o que se chama de periodização do treinamento.
A pandemia 2020 quebrou abruptamente essa rotina, rigorosamente planejada, uma vez que toda a prática esportiva foi suspensa em meados do mês de março, com campeonatos adiados, eventos esportivos cancelados, com perspectivas de retorno incertas. Os atletas, condicionados há anos às suas atividades regradas e programadas, de uma hora para outra se viram impedidos de realizá-las, ocasionando uma série de alterações que transcende o campo do condicionamento físico. O Isolamento social e o confinamento produziram nesses atletas grandes mudanças de hábitos na convivência familiar, na alimentação, nas relações sociais 21. Some-se a frustração, ansiedade, angústia, incerteza financeira, perda de patrocínios, inseguranças contratuais e teremos os atletas profissionais envolvidos em uma grande problemática, que vai além do que foi pensando pelos preparados físicos quando idealizaram os treinos remotos.
Outro elemento a ser considerado são os atletas que de fato foram contaminados pela COVID-19. Até que ponto os trabalhos propostos para se serem realizados durante o isolamento social e sem supervisão direta se adequam a essas pessoas, uma vez que lidamos com uma doença desconhecida? Que tipo de alterações fisiopatológicas esses sujeitos podem ter sofrido, ou sofreram em médio e longo prazo? Será que o atleta pós-COVID responderá de forma semelhante aos demais no retorno às competições?
FATORES DE RISCO EXTRÍNSECOS
1) Ambiente: com a instituição dos treinos remotos, os atletas foram deslocados de seus ambientes naturais de trabalho e passaram a realizar seus treinamentos em suas casas. Uns com espaços maiores, outros com espaços menores, mas certamente, muito diferentes de seus espaços de treino cotidianos. A mudança de rotina é óbvia e inevitável, pois certamente um jogador de voleibol não tem uma quadra de vôlei em sua casa, bem como dificilmente um ginasta terá um ginásio em seu quintal, ou um corredor de 100 metros rasos um a pista de atletismo. As consequências da desambientação são, entre outras coisas, perda da noção espacial, da quantidade de força para a realização de gestos motores e da velocidade necessária para percorrer uma determinada distância.
2) Equipamentos esportivos: da mesma maneira que atleta não possui seu ambiente de treino em sua casa, o material esportivo necessário para a manutenção das condições físicas que ele terá a sua disposição também não será o mesmo. Salvas raríssimas exceções, de uma minoria de atletas milionários, a maior parte dos atletas de alto rendimento não possui uma estrutura completa de treino em suas residências para manterem a mesma rotina de antes do isolamento social. Para esses atletas, os trabalhos domiciliares foram programados com base em substituições de exercícios e atividades e sabemos, que muitos procedimentos de treinamento dificilmente podem ser substituídos.
3) Treinamento: o tipo, intensidade, frequência, regularidade, sazonalidade dos treinamentos são elemento fundamentais no preparo e manutenção de esportistas de alto rendimento. Esse fator de risco extrínseco relacionado ao risco de lesões esportivas é provavelmente o que mais sofre com a pandemia COVID-19. Habituados a treinos presenciais e supervisionados por profissionais de educação física, fisioterapia e fisiologia do exercício, os atletas passaram a treinar sozinhos, a partir de instruções fornecidas por e-mails, vídeos, ou áudios, tendo ainda que adaptar esses treinos à realidade do espaço e material disponíveis a cada um. Como adaptar o treino de um nadador que não tenha uma piscina à disposição? Além disso, possíveis correções de movimento, postura, velocidade e execução se tornaram impossíveis, o que também aumento o risco de doenças e lesões do aparelho locomotor.
FATORES DE RISCO INTRÍNSECOS
1) Estado geral de saúde: uma vez que os atletas estão afastados de seus centros de treinamento e, por conseguinte, das equipes de saúde que os acompanham é difícil fazermos uma avaliação precisa do estado geral de saúde dos mesmos. Já discutimos previamente que as rotinas foram alteradas e essa mudanças podem ter trazido consigo, mudanças no estado geral de saúde. Cabe aqui relembrar o conceito de saúde da OMS: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Com base nesse conceito é muito provável que vários atletas tenham apresentado declínio em seu estado geral de saúde, uma vez que quadros de ansiedade, depressão, angústia e frustação podem ter se instalado 21, além disso, mudanças nos hábitos alimentares, no ciclo do sono e no nível de atividade física trazem consigo alterações metabólicas tais como síndrome da resistência à insulina, aumento do peso corporal e alterações na composição corporal com aumento da massa gorda em detrimento da massa magra. Esse estado de saúde, no mínimo diferente, com os quais os atletas se reapresentarão para a retomada de suas atividades, são todos fatores de risco para a ocorrência de lesões e doenças. O sobrepeso e a redução da massa muscular podem sobrecarregar as articulações 40. As alterações de ordem psicológica podem provocar comportamentos extremos ou exacerbados, como querer recuperar o tempo perdido em poucos dias, causando overtraining.
2) Condição física e cardiovascular: como também já mencionamos anteriormente neste estudo, a condição física (força muscular, resistência muscular, comprimento muscular, capacidade aeróbia, habilidades neuromusculares) sofrerá com os efeitos do destreinamento, que se inicia em dias ou semanas após a suspensão ou redução do nível de atividade física. E novamente, todos esses fatores são potenciais de risco para a ocorrência de lesões no momento de retorno às atividades esportivas. Músculos fracos e encurtados estão mais sujeitos a estiramentos e contusões, bem como os tendões de tais músculos estão mais predispostos a rupturas. As articulações perdem, em parte a proteção de seus estabilizadores dinâmicos (os músculos ao seu redor), aumentando risco de injúrias articulares. Da mesma forma, uma redução nas habilidades neuromusculares, podem conduzir a execução de movimentos imperfeitos que geram forças intra-articulares excessivas, sobrecargas em tendões e ligamentos podendo provocar lesões agudas ou a longo prazo.
Leia este artigo na íntegra:
https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/article/view/15436
SOBRE OS AUTORES:
- Giselle de Paula Atti
Mestre em Ciências da Reabilitação pela Universidade Federal de São Paulo
- Alessandro Pereira da Silva
Pós-Doutorado Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
- Leandro Lazzareschi
Doutor em Engenharia Biomédica pela Universidade de Mogi das Cruzes
- Eduardo Filoni
Doutor em Ciências pela Universidade Estadual de Campinas